Sob a sombra da inteligência, em um Deserto de insegurança
- Pedro Marzano
- 20 de nov. de 2022
- 4 min de leitura
E ai, como estão?
Queria falar um pouco hoje sobre discussões. É até engraçado porque tentei diferenciar várias vezes a “discussão” da qual quero falar da “discussão” com a qual estamos mais acostumados. As várias falhas só mostraram que, na verdade, elas são a mesma coisa.
Uma das coisas que mais me fascina na ciência é a falta de medo em discutir. Cientistas publicam seus resultados propondo revisões muitas vezes fundamentais nas áreas que ocupam. Desmontam castelos imensos, frutos de trabalho árduo de dezenas de pessoas, simplesmente porque os tijolos da fundação não eram tão fortes como se imaginava. Os construtores, presentes desde o início, podem até hesitar. Argumentam que a fundação é robusta sim; que os tijolos alternativos não são mais fortes. Entretanto, a evidência é soberana. Uma vez que escutam aquele que propôs a mudança e percebem que, de fato, os outros tijolos seriam melhores, organizam a demolição e -mais importante- reconstrução da estrutura que outrora consideravam impecável.
É claro que na realidade não é bem assim. A comunidade científica é cheia de emocionados que se prendem a ideias abolidas há décadas ou séculos. É relativamente normal, mas eu não sei bem o porquê.
Esse assunto é tão batido que fica até difícil propor algo que não já não seja repetido quase diariamente por boa parte das pessoas. “Não há problema em mudar de ideia”; “aprender sempre é evoluir”; “Não devemos ter medo de colocar nossas ideias em cheque”; etc.
Imagino que qualquer pessoa que seja desafiada por uma dessas frases concordaria com cada uma delas. Elas diriam que vivem assim, seguindo esses princípios. É muito provável, inclusive, que você que está lendo pense dessa forma também.
Mas será?
Se todos pensam assim; se todos concordam com isso, por que as coisas continuam dessa forma? Por que ainda há quem se agarre a ideia qualquer que seja? Defenda-a com unhas e dentes mesmo que as evidencias delicadamente sugiram o contrário.
Eu sinto que parte do problema seja o estigma ao redor da inteligência. É algo tão abstrato e, ironicamente, tão difícil de ser categorizado ou medido que se torna um último refúgio para nossa insegurança. Uma última sombra sobre um deserto de incerteza a respeito de si. Um local onde o sol avassalador da autocrítica pode ser amenizado.
Não se pode mudar, de repente, a aparência que agoniza. Não é possível se transformar, de hora para outra, no sonho físico que se almeja. Os espelhos sempre estão lá para lembrar do quão distante se está do objetivo - ou, muitas vezes, do simples sonho. É claro que há dias que nos sentimos impenetráveis e nada parece nos abalar. Na analogia do deserto, esses pulsos de conforto seriam como nuvens no céu, que, hora ou outra, tapam o sol e aliviam a pele, nos permitindo enxergar as dunas como ondas e imaginar estar surfando.
Isso passa, infelizmente.
Mas a inteligência não é como uma nuvem. É uma sombra fixa que ficará ali pelo tempo que for. Ela é plástica e sem forma, o que faz com que a força do sol crítico possa ser confundida.
“Você é burro! Errou aquela questão” - diz o sol
“Eu não sou burro, eu só estava cansado” - você responde
“Ué, e seu teste de QI? Tão baixo!” - diz o sol, provocando
“Eu não acredito nisso! Fora que fiz por fazer mesmo” - você retruca, nervoso
Dessa forma, a autopercepção de inteligência se molda a responder a inquisição da insegurança e se amplia como escudo, independente de como o faz. Assim, o ser humano se estabelece sob a sombra do senso de esperteza, uma das poucas presentes no deserto de insegurança. Agora que encontrou um local onde pode descansar, naturalmente opta por expandi-lo. Expansão essa que, muitas vezes, supõe destruir a sombra de outros companheiros que encontra no deserto.
Na distância, vê-se uma outra árvore com alguém descansando sob a sombra. Imediatamente se pensa “Nossa, que sombra pequena!” e, ao olhar para cima, repara que a sua aumentou. De repente, torna-se um vício. Percebe-se que a melhor forma de aumentar sua autopercepção de inteligência é compará-la com a dos demais. Se a sua for maior, ela cresce; se for menor, mentalmente diminui a do outro.
E assim, tudo e todos batalham entre si. Em constante tentativa de diminuir e sabotar a sombra alheia para que a sua pareça maior.
Com essa reflexão, consigo expor meu ponto.
A inteligência virou algo sagrado para o indivíduo, que parece ser quase paranoico. A discussão tornou-se arma para inflar ou diminuir as sombras enquanto as ideias passaram a ser remendos das copas das árvores ao invés de frutos, de forma que, se desafiadas, expõe o indivíduo ao sol agressivo do qual todos temem. Por isso, são protegidas como sagradas, mesmo que já podres e praticamente decompostas.
Assim, o diálogo, que deveria ser uma congregação de indivíduos que trocam frutos das árvores sob as quais descansam, tornou-se uma guerra para eliminar o descanso daqueles ao redor, simplesmente porque, ao fazê-lo, se sentem mais descansados.
Eu não acredito em inteligência, mas isso é tema para outro texto.
Eu só gostaria que alguém estivesse disposto a consumir os frutos de minha árvore; não tentar destruí-la. Adoraria trocar nossos frutos e, quem sabe até sob a mesma sombra, discutir os sabores.
Obrigado pelo tempo
Até a próxima!
-Pedro Marzano

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