Namíbia.
38° C.
Já não chove há meses.
Enquanto leopardos e víboras solitárias se esgueiram à deriva neste mar alaranjado, em busca de uma sombra qualquer que alivie o calor angustiante, um pequeno companheiro passa despercebido.
Preto, menor que uma jabuticaba e uma provável pedrinha ao nosso olhar, o besouro pequenino parece posar contra o vento, servindo como um aeroporto para as escassas gotículas de água que sobre ele pairam. Mal sabem elas que, assim que pousarem, escorregarão desatentamente do abdômen à boca, matando a sede do miúdo.
É como dizem por aí: “Quem come quieto come duas vezes” ...
Seu nome? Stenocara gracilipes. Para os íntimos: “Besouro da Namíbia”.
Como?
Como ele faz isso?
Por décadas, a pergunta martelou as cabeças de cientistas de várias áreas. Químicos se atentavam à possíveis substâncias inéditas, ao mesmo tempo em que biólogos pensavam em possíveis estruturas celulares relacionadas à vias metabólicas totalmente distintas do que já fora catalogado. Sempre preocupados em como as gotículas desciam até a boca do animal.
Os físicos...
Bom, estes resolveram o problema. (Ou pelo menos parte dele)
Hunter King, junto aos seus colegas da Universidade de Akron, em Ohio, propuseram modelos que relacionavam a textura e formato do abdômen do besouro com a quantidade de água capturada. Antes que a gotícula viaje até a boca, é preciso que seja acumulada, então, nada melhor do que começar o mergulho pela preparação do equipamento.
Pode parecer fácil capturar umidade. Quando sopramos no espelho e vemos um gradativo aumento na opacidade, aquilo é água, certo? Sim, “mas se você tenta pegá-la, passa direto pelos seus dedos”, diz King. “O problema é este, é difícil fazer com que as duas coisas se toquem.”.
Com isso em mente, o time de cientistas projetou modelos tridimentsionais de esferas com três texturas básicas diferentes: irregulares, ranhuradas e totalmente lisas - prioritariamente para controle- , todas com a mesma área superficial. Após o projeto, foram impressas e colocadas em túneis especiais de vento para que sua capacidade de acúmulo pudesse ser testada de forma controlada.
Os resultados foram interessantes. Enquanto a esfera lisa apresentava acúmulo padrão, a que possuía superfície com irregularidades de apenas 1 milímetro era capaz de capturar 2,5 vezes mais umidade dentro das mesmas circunstâncias. De certa forma, surpreendente, certo?
Pense bem, em superfícies lisas, as moléculas de água interagiriam com mais facilidade umas com as outras, o que facilitaria a formação de gotículas. Do mesmo modo, superfícies ranhuradas apresentariam espaços em que seria possível armazenar gotículas e forçar agrupamentos. Mas e as irregulares?
Bom, a equipe de Hunter, sozinha, não era capaz de entender o resultado, por isso convocaram Mattia Gazzola, perita em movimento animal, e o graduado Fan Kiat Chan, que juntos trabalham em um laboratório especializado em simulações hidrodinâmicas na Universidade de Illinois, em Urbana, Estados Unidos. A dupla projetou um modelo computacional que simulava as diferentes forças hidrodinâmicas atuantes sobre as gotículas de água, encorajando sua aderência. Uma importante variável que fora descoberta era a lubrificação da superfície. Ao contrário do que parece intuitivo, uma fina camada de água é suficiente para impedir a adesão de novas moléculas, portanto, quanto mais seca uma superfície, mais água, paradoxalmente, é capaz de acumular. Todos os resultados foram apresentados pela equipe na 72° edição da Reunião Anual
da Sociedade Física Americana de Dinâmica de Fluídos, em novembro deste ano.
Voltemos ao nosso amiguinho.
Aposto que você até esqueceu que estávamos falando dele.
Eu entendo, é normal que a ciência se complique tanto que se esqueça de onde veio.
Repare na imagem ao lado. Consegue ver aquelas pequenas irregularidades no abdômen do besouro? Pois é. Percebeu a relação com o experimento que acabamos de descrever? E sobre a tal necessidade de ausência de água na superfície? Bom, estamos no deserto, então não acho que seja um problema...
Enquanto pensamos em besouros, os cientistas pensam em tendas, acampamentos de refugiados, climas secos, crise hídrica, etc. Imagine se pudermos, através do diálogo com este carinha, desenvolver novas formas limpas de coleta de água direto do ar atmosférico? Imagine quantas pessoas poderiam ter suas vidas salvas por uma ideia tirada de um besouro.
E pensar que todas essas possibilidades nasceram apenas da curiosidade por um bichinho tão pequeno e, de certa forma, irrelevante para nós.
Isso é ciência.
O olhar atento às pequenas particularidades do mundo ao nosso redor. É a expressão humana da tentativa de entender onde estamos e de onde viemos. E é da curiosidade pura, e apenas dela, nascem as mudanças mais profundas.
Este besourinho nos ensina uma lição valiosa. É bom prestar atenção nas pedrinhas em nosso caminho, nem que seja só por saberem que ali estão, pois é provável que escondam respostas fascinantes para perguntas mais fascinantes ainda.
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