Na última segunda feira, estava, como de costume, assistindo à minha aula de evolução. A temática era voltada aos diferentes modos como a seleção de organismos atua no processo evolutivo. Não é o tema do texto de hoje, mas, a título de ilustração, são eles: natural, artificial e sexual.
Em um dos slides sobre seleção artificial - basicamente o processo de domesticação-, a professora usa como exemplo o experimento iniciado em 1959 pelo pesquisador russo Dmitri Belyaev. Sim, “iniciado”. Mesmo após trinta e cinco anos da morte de seu idealizador, os testes e coleta de resultados continuam sendo sistematicamente realizados, produzindo material relevante para essa e, provavelmente, as próximas gerações de cientistas da área.
Confesso que o que me deixara interessado foram os próprios resultados do experimento, o que levantou minha vontade de escrever sobre. Apenas enquanto pesquisava mais aprofundadamente soube dos detalhes mais “trágicos” da história, que, obviamente, não poderiam escapar da redação.
Em resumo, Belyaev questionava os motivos da constância de certas características em animais domesticados. Entre outras, ele reparava nas orelhas caídas, ciclo reprodutor mais longo, focinhos mais curtos e juvenis, baixo estresse, cauda caída e, normalmente, curvada. Se perguntava o motivo do aparecimento desses atributos físicos, aparentemente não relacionados aos critérios mais práticos de domesticação, tais como parcimônia, obediência, etc. Ele imaginava que, de algum modo, esses elementos poderiam estar ligados, de forma direta ou indireta, ao comportamento “amável” que facilitava a domesticação.
A partir dessa dúvida, buscou visualizar a domesticação em tempo real. Propôs um experimento em que, geração após geração, raposas cinzentas criadas em cativeiro seriam selecionadas com base em sua “mansidão”; aquelas mais suscetíveis ao contato humano formariam os pais da geração seguinte. Para que fosse mantida a objetividade, uma avaliação numérica dos fatores foi utilizada e os indivíduos com pontuações mais altas reproduziam entre si.
O objetivo primário do experimento era não só visualizar a própria seleção natural em andamento, mas perceber se aquelas características observadas por Belyaev, aparentemente desconexas, apareceriam.
Os resultados foram - e continuam sendo- impressionantes.
Após cerca de seis gerações - aproximadamente seis anos- uma porção da população estudada já havia criado o hábito de lamber os pesquisadores e permitir o contato físico, como carinho e colo. Começaram também a não só abanar o rabo quando estes chegavam, mas chorar no momento em que saíam.
Poucas gerações depois, antes do experimento completar uma década, a maior parte dos indivíduos já apresentava orelhas caídas, focinhos joviais arredondados e pelo manchado. A modificação não se restringia ao físico. Em análise aprofundada, os cientistas perceberam aumento significativo nos índices de serotonina dos animais e, mais surpreendente, uma diminuição considerável em suas glândulas suprarrenais - aparelho secretor da adrenalina.
As previsões de Belyaev foram confirmadas: características aparentemente comuns entre animais domesticados - eventualmente chamados de portadores da “síndrome da domesticação”- pareciam estar relacionadas aos critérios de “mansidão” adotados pelos pesquisadores. O geneticista não foi capaz de determinar o modo pelo qual essa relação seria estabelecida, mas, definitivamente, ajudou na coleta hexagenária de evidências valiosas para a compreensão deste processo tão presente: a seleção artificial.
Inspirados pelas discussões levantadas pelo experimento, cientistas ao redor do mundo, unidos aos avanços tecnológicos, destrincharam ainda mais a questão e propuseram um modelo que tem adquirido cada vez mais validez. Um desses, inclusive, utilizou a metodologia inversa do trabalho de Belyaev, selecionando raposas cada vez menos mansas e observando os resultados.
Pelo que as evidências sugerem, o processo de domesticação envolve, primoridialmente, alterações na expressão genética, e não o aparecimento ou deleção de genes em si. Já é conhecimento antigo na área que as mesmas informações contidas em certa porção de DNA podem gerar características totalmente distintas via alteração de fatores como ordem de expressão, seleção de fragmentos específicos de genes, concentração e circunstâncias hormonais, etc. Em síntese, as mudanças parecem derivar da manipulação da expressão genética, e não dos genes em si.
Essa conclusão limita-se à explicação de mudanças no comportamento, entretanto. Pode-se argumentar que as raposas mais mansas tinham a expressão de genes neuronais - as células do sistema nervoso- favorável aos critérios de seleção dos cientistas. Como, no entanto, essas mudanças chegavam às orelhas, focinho e pelo?
A explicação mais adequada até o momento reside no próprio desenvolvimento do sistema nervoso.
Durante uma certa etapa do desenvolvimento do embrião, as células tronco que se diferenciarão em neurônios e outros elementos do sistema nervoso dobram-se para dentro para formar o “tubo neural”, estrutura base de todas as demais do sistema central. Nesse processo, duas projeções, chamadas “cristas neurais”, levantam-se para que concluam a formação do tubo em seu encontro. Ao fim do processo, certa quantidade de material sobra lateralmente e desenvolve-se em elementos nervosos anexados - como os nervos, por exemplo. Algumas das células desse material, em certo momento, podem migrar para outras regiões, e, como são pluripotentes - conseguem variar em tipos diferentes de células - interferem na maturação de outros tecidos. Por guardarem em si aquelas diferenciações em expressão gênica típicas dos neurônios que seriam, transportam-as para o que serão outros tecidos, alterando-os sob a regência desse mecanismo modificado.
É possível argumentar que nós só existamos graças à domesticação. Nossas plantas são domesticadas; nossos animais são domesticados. Há quem argumente que, na verdade, nós é que fomos domesticados pelas safras que produzimos, da mesma forma como certas formigas protegem plantas que lhes dão seiva nutritiva.
Entender este processo é essencial para que possamos, aos poucos, cultivar formas cada vez mais adequadas às nossas necessidades de consumo e padrões de vida. Essa necessidade não é nova. Há séculos homens e mulheres gastam esforço para garantir a alimentação. Na Rússia, em especial, onde o solo é pouco fértil e, na maioria das vezes, congelado, a questão é ainda mais antiga.
Um homem em especial, Nikolai Vavilov, tinha o objetivo de expandir a agricultura sustentável e adaptada a países de diferentes regiões climáticas ainda no início do século XX. Ele viajou o mundo coletando dados, amostras de solo e sementes, indivíduos de diferentes espécies e depoimentos de agricultores locais a fim de desenvolver uma forma ideal de cultivo específica para cada um dos climas mundiais. Em suas viagens, conseguiu completar a hoje considerada maior coleção científica já agrupada.
Seus esforços, entretanto, foram em vão.
Eu confesso que não queria escrever sobre isso, mas achei interessante como o que chamamos de “pseudociência” literalmente nasceu dessa história.
Na antiga União Soviética, era comum que trabalhadores, mesmo sem instrução, fossem introduzidos nas academias científicas nacionais. Era uma medida de valorização da classe proletariada, como se o governo estivesse elevando o nível da população. Teoricamente estava, mas de forma totalmente artificial.
Um desses homens - o qual restringirei minhas palavras ao nome por não ter estudado o suficiente de sua história - era Trofim Lysenko. Basicamente vivia da agricultura, e, de repente, passou a alegar ter a técnica ideal para solucionar os problemas da produção rural soviética. Era adepto ao lamarckismo, corrente extinta do pensamento evolutivo que baseava-se na herança de caracteres adquiridos. A famosa ideia de que “os pescoços das girafas crescem pois são esticados para alcançar folhas altas”.
Lysenko manipulava evidências, fazia experimentos enviesados, formulava conclusões e teorias baseadas apenas em fatos favoráveis, entre outras atitudes comuns na prática pseudocientífica.
Por ser um elemento favorável aos ideais soviéticos de progresso, rapidamente foi adotado como símbolo por Stalin, o que favoreceu a formação de uma legião de seguidores. Além disso, acabou por prejudicar o desenvolvimento da genética mendeliana no país, pois esta ia de encontro avassalador ao lamarckismo por ele adotado.
Como um bom cientista e, principalmente, um grande interessado na área, Vavilov passou a tentar reproduzir os experimentos de Lysenko a fim de verificar sua autoridade. Imediatamente percebeu a fraude e passou a militar contra os seus dizeres. Inevitavelmente, acabou sendo perseguido e morto. O modus operandi adotado por Lysenko fora tão único, e praticamente inédito em manipular o método científico, que fora batizado de Lysenkoismo, agora conhecido como “pseudociência”.
Tudo bem, mas como isso se relaciona com as raposas sobre as quais conversávamos no início?
Belyaev era geneticista e, na época em que iniciaria seu famoso experimento, vice-diretor do instituto de Citologia e Genética em Nevosibirsk, Sibéria. Como fruto do que fazia Lysenko, a genética era mal vista e, nos olhos do governo, “perigosa”. Poderia expor a fraude alimentada pelo próprio Stalin. Por pouco, Belyaev não teve sua ideia censurada. Se não fosse pelo experimento, é provável que estudos genéticos atuais tivessem uma lacuna imensa, a qual poderia nos privar de luxos que, honestamente, eu não sei a extensão.
Pseudociência não é “questão de acreditar”. Não é inofensiva. Não deve ser “tratada como igual”. Ela manipula, interfere no progresso, desvia recursos valiosos que, se aplicados nos locais corretos, podem poupar gerações inteiras de problemas básicos e, na maioria das vezes, elementares.
Apenas imagine se o trabalho de Vavilov tivesse sido estimulado ao invés do charlatanismo de Lysenko. Onde estaríamos?
A pseudociência não é só o terraplanismo ou o conspiracionismo lunático e claramente falso que levanta risadas. A pseudociência está no “remédio para emagrecer”. Está no “os médicos não querem que você saiba disso”; na fala “ficam gastando dinheiro com pesquisa boba”; no seu horóscopo do dia.
Você consome e propaga pseudociência diariamente. E não, ela não é “sua opinião”.
Pseudociência não é como religião: “questão de crença”.
É muito diferente.
Mas isso é assunto para outro texto.
Obrigado por ter lido,
Abraço!
FONTES:
Dugatkin, L.A. The silver fox domestication experiment. Evo Edu Outreach 11, 16 (2018). https://doi.org/10.1186/s12052-018-0090-x
https://pt.wikipedia.org/wiki/Trofim_Lysenko
https://pt.wikipedia.org/wiki/Nikolai_Vavilov
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